Capoeira, uma arte afro-brasileira

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Esse post é a tradução do texto da minha filha Júlia Cassiano, apresentado em seu curso de História da Arte na Universidade Humboldt de Berlim.

 

Apesar dos esforços crescentes da academia nas últimas décadas para destacar os países pós-coloniais do Hemisfério Sul, persiste a triste realidade de que as discussões sobre o sofrimento negro nas Américas tendem a se concentrar fortemente nas regiões norte do continente, particularmente nos Estados Unidos. 

Considerando que o Brasil recebeu um total de aproximadamente 4 milhões de africanos como resultado do tráfico transatlântico de escravos portugueses – o maior de todas as nações das Américas, representando entre 38% e 44% do total de africanos forçados a deixar o continente – e foi o último país ocidental a abolir totalmente a escravidão, o Brasil (a maior ex-colônia de Portugal) merece significativamente mais atenção no discurso histórico sobre os negros. 

Como resultado de quase 400 anos de escravidão negra, o legado da luta afro-brasileira pela liberdade é extenso e, apesar da repressão sistemática implacável às tradições africanas em todas as suas manifestações, as formas de expressão cultural negra resistiram e contribuíram paradoxalmente para o senso de identidade pós-colonial e pós-imperial do país. 

Embora algumas dessas formas culturais de expressão – das quais o samba é o exemplo mais proeminente – gozem de popularidade global por seus ritmos animados e natureza participativa, muitas vezes existe uma desconexão e uma falta de reconhecimento entre os não brasileiros (e às vezes até brasileiros) em relação ao profundo significado que essas práticas têm para a comunidade negra. 

Originadas durante a época da escravidão, essas expressões culturais serviam não apenas como entretenimento, mas também como linguagens vitais por meio das quais os negros podiam articular seus sofrimentos, estabelecer laços sociais e resistir ativamente à opressão dos colonizadores brancos. 

Uma das expressões culturais que encarna mais profundamente o espírito inabalável da resistência afro-brasileira é a capoeira – uma prática excepcional que integra música, luta e dança em um esporte que transcende o nível físico e alcança o domínio da filosofia. Apesar de seu reconhecimento hoje como patrimônio cultural imaterial pela UNESCO e de seu status respeitado como arte marcial em todo o mundo, a capoeira historicamente enfrentou perseguição e criminalização de longa data pelas autoridades brasileiras devido às suas raízes africanas. 

O objetivo deste artigo é lançar uma luz muito merecida sobre essa rica prática cultural e transmitir o que torna a capoeira tão profundamente empoderada para a comunidade afro-brasileira. 

Esse artigo está dividido em duas partes. A primeira explora os múltiplos elementos que constituem a capoeira como prática, incluindo uma análise de sua ênfase na participação e improvisação. Também examina o conceito de malícia, uma ideologia central para a prática da capoeira. A parte dois apresenta a história da capoeira, enfocando seu surgimento durante a escravidão e sua época de criminalização. Analisa como a capoeira serviu como uma ferramenta eficaz para os afro-brasileiros lutarem contra a tentativa do opressor branco de apagar a tradição africana. 

A pesquisa para este artigo baseia-se principalmente no livro de J. Lowell Lewis, Ring of Liberation: Deceptive Discourse in Brazilian Capoeira, de 1996, que explora minuciosamente os diferentes elementos que constituem as performances de capoeira, categorizados em Jogo Corporal, Jogo Musical e Jogo Verbal, e a influência fundamental da malícia em todos os aspectos da prática.

É importante notar que a capoeira é uma prática cultural altamente elaborada. Apenas a leitura deste artigo não permite uma compreensão extensa e abrangente do tema. Encorajo fortemente os leitores a se engajarem em pesquisas literárias mais aprofundadas sobre a prática, assistirem a vídeos de performances de capoeira e ouvirem músicas tradicionais de capoeira em plataformas online. Participar respeitosamente de apresentações ao vivo, se possível, também é altamente recomendado.

 

Dentro da Roda: Entendendo a dinâmica da Capoeira

Não é fácil definir a capoeira como uma prática. Ela não pode ser reduzida a um único gênero porque contém uma infinidade de elementos que desempenham um papel importante em sua execução. A capoeira pode ser descrita simultaneamente como ritual, arte marcial, dança, esporte, filosofia, teatro e performance musical. No entanto, entre todos os respectivos componentes, a arte marcial e a dança são as mais associadas à capoeira hoje em dia, pois é uma prática famosa por sua mistura única de luta e jogo. 

Quando dois capoeiristas competem ou se apresentam, eles participam de um jogo complexo que simultaneamente os posiciona como oponentes (com manobras um contra o outro), ou como aliados (movendo-se juntamente um com o outro). As manobras são extremamente dinâmicas, caracterizando-se pela ênfase nas técnicas de chute rotacional e pelo movimento constante da ginga, etapa fundamental do esporte. 

Em uma performance típica, os capoeiristas evitam fazer contato físico uns com os outros e, em vez disso, calculam seus chutes para apenas "errar o alvo". Esta impressionante exibição de controle corporal resulta em um show hipnotizante que enfatiza as qualidades visualmente estéticas das técnicas de luta. Nesse contexto, os movimentos de combate transcendem seus vínculos inerentes à agressão e revelam-se graciosos de testemunhar, caracterizando o duelo como uma dança, efeito fortalecido pelo aspecto musical integrado na performance.

Assista ao vídeo abaixo:

 

As performances de capoeira são chamadas de “jogo”, e ocorrem dentro e ao redor de um anel formado por espectadores ou desenhado diretamente no chão. Essa “roda” serve como uma arena dentro da qual dois capoeiristas de cada vez se enfrentam. As rodas de capoeira ocorrem mais frequentemente em ambientes de rua, mas também em torneios culturais e esportivos. 

A capoeira é um esporte comunitário que depende muito do diálogo entre aqueles que estão dentro do círculo e aqueles que o cercam – os membros do público não são espectadores passivos, mas sim participantes ativos que desempenham partes integrantes nos procedimentos da performance. Acima de tudo, sua contribuição musical é indispensável em qualquer roda, pois a capoeira tradicional depende muito do toque de instrumentos e do canto do refrão para ditar o ritmo e o desenvolvimento da dança/luta, em algumas ocasiões até mesmo tendo influência direta sobre os tipos de movimentos que os competidores escolhem empregar. 

A luta da capoeira também se estende aos músicos, que na maioria das vezes são capoeiristas, e de vez em quando, participam do jogo físico dentro da roda. Como resultado, a capoeira é uma prática que borra as linhas e não distingue claramente entre espetáculo e plateia. 

A música presente na capoeira tradicional é executada por um conjunto de instrumentos de origem africana, sendo o mais importante deles o berimbau, um musical de cordas únicas. Acredita-se que o arco tenha se originado no Brasil colonial por meio da fusão de influências musicais de Angola e de outras regiões africanas. 

 Berimbau.

Na maioria dos casos, os tocadores de berimbau tocam também os outros instrumentos, que consistem em diferentes tipos de tambores, como o pandeiro e o atabaque. A música de capoeira enfatiza fortemente a percussão sobre qualquer outro elemento musical, como a jogada delineia a intensidade com que os competidores dentro do ringue se movem, essencialmente agindo como o coração pulsante da performance. Habitualmente, o ritmo começa lento e aumenta gradualmente à medida que o jogo físico evolui.

 Atabaque - Adobe Stock Images.

Em “Ring of Liberation: Deceptive Discourse in Brazilian Capoeira”, J. Lowell Lewis explica como o berimbau tem um som caracteristicamente hipnótico marcado pela alternância entre uma nota alta 'parada' e uma nota baixa 'ininterrupta', que espelha a interação entre ataque e defesa, movimentos de segurar e soltar, e a característica de tomada de turnos tão fundamental para o jogo físico que acontece dentro da roda. 

Como o jogador de berimbau principal alterna entre os dois tons e, às vezes, até quebra completamente os padrões rítmicos, os lutadores são encorajados a ecoar essas mudanças diretamente em seu desempenho – uma alternância tonal constante que se traduz em um dar e receber uniforme de movimentos, e uma quebra de padrões potencialmente levando um jogador a atacar enganosamente duas vezes seguidas. Essas reações demonstram a quantidade de influência direta que os músicos têm sobre o fluxo e o humor do jogo e enfatizam a importância da comunicação hábil e principalmente não verbal entre os participantes dentro e ao redor do ringue. Nas palavras de Lewis: "Os músicos criam a atmosfera dentro da qual o jogo ganha vida; eles tornam o jogo possível, e o jogo, por sua vez, dá sentido à música."

Outro elemento musical integrante das apresentações que mostra a herança africana no centro da prática, é encarnado pelo canto, conduzido por um vocal solo e seguido por um coro. Esses cantos de chamada e resposta são chamados de cantigas. Embora a maioria das cantigas cantadas sejam aquelas que foram memorizadas e transmitidas muitas gerações de capoeiristas, eles também podem ser improvisados espontaneamente. 

No canto, também há um aspecto lúdico, pois o solista é livre para alternar repentinamente entre as músicas e, essencialmente, enganar o refrão para que cante as letras erradas e/ou exponha os membros da plateia que não estão prestando muita atenção. Por outro lado, o coro também pode desafiar a posição de poder do solista ao optar por reter sua resposta – isso pode acontecer se o solista for considerado muito inexperiente ritmicamente ou se sua escolha de música for considerada inadequada para aquele momento da apresentação. Assim como um maestro depende de sua orquestra para criar música, o solista também depende da participação do coro. 

Assim, a capoeira oferece um campo de jogo onde as relações de poder são desafiadas, e cada participante – seja dentro ou fora do ringue – detém um grau de autoridade ao longo da performance. Essa igualdade entre todos os participantes contribui para o poder coletivo da comunidade. Essas qualidades de improvisação se alinham com a filosofia central que nutre a capoeira: a malícia

A tradução literal desse termo é 'maldade', mas não carrega as mesmas conotações negativas na língua portuguesa e é melhor entendida como 'astúcia'. 

Na cultura brasileira, a malícia é predominantemente tida como uma virtude, embora não necessariamente se queira estar na ponta receptora. Essencialmente, é o entendimento de que o mundo é especialmente hostil para com aqueles que são muito ingênuos e complacentes – portanto, para sobreviver e prosperar, é preciso aprender a instrumentalizar inteligentemente o engano e aplicá-lo na vida cotidiana para ganhar vantagem. A Malícia geralmente não defende a imoralidade ou a má conduta para com os outros. Em vez disso, aconselha os seguidores a carregarem sempre consigo um nível de cinismo, a nunca baixarem completamente a guarda e a evitarem confiar demais em alguém.

Essa ideologia de auto defensa se originou no período da escravidão, quando a existência negra era extremamente perigosa e a maioria das pessoas escravizadas não podia se dar ao luxo de desafiar abertamente o opressor branco, mas podia se rebelar de maneiras mais sutis usando brechas, a incompetência armada e a ambiguidade de certas regras a seu favor. 

A capoeira honra essa tradição rebelde por ser um esporte que recompensa muito os lutadores que são criativos e habilmente encontram maneiras de obter vantagens sobre seus oponentes, seja física ou verbalmente. Por outro lado, jogadores que insistem em usar sequências de movimentos coreografados e se recusam a inovar são facilmente superados pela maioria dos capoeiristas, cujo treinamento prioriza o domínio da arte da surpresa e da malandragem. 

Embora esse grau de apreço pela malícia seja um dos traços distintivos da capoeira, a rejeição de coreografias rígidas e a celebração da espontaneidade, criatividade e fluidez são qualidades compartilhadas por muitas práticas culturais negras diferentes. 

Ao examinar as observações de C.L.R. James e Hélio Oiticica sobre o críquete e o samba, Laura Harris destaca o caráter dinâmico dessas práticas culturais negras e como elas diferem profundamente das tradições europeias. Como escreve Oiticica, o samba, ao contrário do balé altamente coreografado, prospera em suas imagens em constante mudança que não podem ser fixadas ou reproduzidas com precisão, tornando cada apresentação um evento único. O mesmo vale para a dança hip hop-norte-americana, que, como aponta Naomi Macalalad Bragin em Streetdance e Black Aesthetics, surgiu para refletir experiências cotidianas vividas pelas pessoas negras urbanas, incorporando em seu estilo original e informal a adaptabilidade e a inovação necessárias para a sobrevivência. 

Ao discutir as práticas linguísticas e musicais negras, Nathanial Mackey argumenta em Other: Do verbo ao substantivo que essa ênfase na improvisação e nas formas dinâmicas inerentes às práticas culturais negras pode ser entendida como uma reação direta às tentativas históricas da hegemonia branca de entrincheirar a população negra e negar-lhe mobilidade social e econômica. 

A recusa em abandonar seu caráter transformador, imprevisibilidade e caráter enganoso faz da capoeira um símbolo de resistência contra a passividade e um meio para a comunidade negra reivindicar parte dos valores que foram sistematicamente tirados deles. 

Em síntese, a capoeira caracteriza-se pelo casamento entre combate e dança, dois elementos que, embora aparentemente antitéticos, são magistralmente unificados sob a orientação da percussão musical e do canto combinado, onde o desempenho se estende além do ponto focal no centro da roda.

De fato, a participação de todos os presentes – sejam músicos, instrumentistas ou parte do coro – é altamente incentivada. A roda conta com o engajamento da comunidade e o diálogo entre todos os participantes, criando um jogo dinâmico que, fiel ao espírito da malícia, premia o engano lúdico e o improviso.

 Imagem do Blog Brasil de Fato.

Em sua essência, a capoeira é uma prática cultural que une a comunidade afro-brasileira para ao mesmo tempo, testemunhar e participar de uma demonstração envolvente de poder físico negro, engenhosidade e, acima de tudo, resiliência diante da injustiça racial.

 

A Capoeira através da perspectiva histórica

No Brasil, a capoeira é mais notoriamente associada à luta da comunidade negra pela liberdade e, para entender o porquê, é necessário um exame mais atento do passado da prática. Infelizmente, a história inicial da capoeira é difícil de ser traçada, em grande parte por causa de sua conexão inerente à população negra escravizada, cuja cultura foi alvo de incansáveis tentativas de apagamento por parte dos colonizadores europeus durante séculos. 

 

Onde surgiu a Capoeira

Sabe-se que a capoeira resultou da mistura de diferentes artes, danças, rituais e instrumentos de diferentes partes da África, embora quais regiões permaneçam exatamente um tópico de discussão entre os estudiosos. Também é consensual que essa mistura foi realizada em solo brasileiro, uma vez que africanos de diversas culturas foram colocados em contato próximo durante o trabalho forçado nos engenhos de cana-de-açúcar a partir do século 16. 

É uma crença generalizada que o Estado da Bahia – e especificamente sua capital, a cidade portuária de Salvador – constitui o berço da prática, uma vez que historicamente abrigou o peso dos africanos escravizados importados para a colônia portuguesa. A Bahia viria a perdurar como um dos principais centros da prática do esporte ao longo de toda a sua história.

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A origem da palavra Capoeira

A palavra "capoeira" tem origem na língua indígena sul-americana Tupi Guarani. A hipótese principal é que ela esteja enraizada na palavra ka'auera, que significa literalmente "vegetação do passado" e descreve a vegetação secundária que cresce em uma área após a remoção da original. Acredita-se que a capoeira tenha sido assim denominada devido a esse tipo de terreno ser onde os afro-brasileiros escravizados que trabalhavam nas plantações se desenvolveram pela primeira vez e treinariam a prática. 

Outra hipótese sugere sua origem a partir da palavra caapo, nome do cesto de palha tecido que os escravos carregavam na cabeça para transportar mercadorias para a cidade, sendo capoeira o termo para o portador das cestas. 

Qualquer que seja a verdadeira origem, destaca-se a incipiente relação entre capoeira como prática cultural e as vivências cotidianas de pessoas escravizadas de pretos e pardos no Brasil colonial. 

Ainda hoje, persistem muitos mitos e folclore em torno das origens da capoeira, sendo que os mais populares afirmam com segurança que se tratava de um estilo de luta criado por escravos que intencionalmente a disfarçavam de dança para driblar a perseguição dos senhores de engenho. Segundo essa teoria, os africanos escravizados poderiam, por meio dessa pretensão, treinar a autodefesa e preparar-se para suas futuras tentativas de fuga, evitando alarmar seus opressores. Essa ideia, embora em consonância com o espírito malícia tão integrante da capoeira, é altamente improvável em um sentido histórico, pois as danças africanas também foram fortemente reprimidas e regulamentadas pelos mestres, tornando inútil disfarçar a verdadeira natureza da prática. 

No entanto, o fato de essa lenda ter proliferado com tanto sucesso ao longo dos séculos e ainda ser predominante entre os capoeiristas contemporâneos e a população brasileira em geral, é uma prova de quão perto as raízes da forma de arte estão ligadas ao legado da resistência negra e parda contra a opressão branca. A capoeira existe entre a população negra brasileira há centenas de anos – possivelmente desde o século 17 entre as comunidades escravas fugitivas, mas, infelizmente, relatos históricos substanciais só começam a surgir no final do século 18.

 

A Capoeira era considerada Crime

A partir do início dos anos 1800, a capoeira começaria a aparecer com frequência nos arquivos policiais do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. O estilo de luta acabou desenvolvendo uma reputação negativa duradoura entre a classe média e a população de classe alta, que vinculava diretamente sua prática à criminalidade negra dentro dos centros urbanos. 

Na primeira metade do século 19, a capoeira existia predominantemente entre grupos de pessoas anteriormente escravizadas e habilidosas no combate corpo a corpo, que vagavam pelas ruas de bairros pobres (como gangues) e se armavam com facas dobráveis (navalhas). A capoeira desse período era muito diferente da praticada hoje. As partidas eram sangrentas e, às vezes, até fatais, descrita por fontes da época como uma "dança de guerra". Essa versão muito mais violenta também ainda não incluía muitos dos movimentos mais acrobáticos e a música fortemente associada ao esporte nos dias de hoje. 

Em seus estágios iniciais, a capoeira servia essencialmente como uma formidável e eficaz ferramenta de sobrevivência para o indivíduo preto ou pardo, que a utilizava, em primeiro lugar, para proteção e, em segundo lugar, para ganhar respeito entre os pares, encontrar-se parte de grupos confiáveis e estabelecer hierarquias dentro desses grupos. 

Na segunda metade do século 19, a capoeira expandiria seu alcance de influência para além da comunidade afro-brasileira e passaria a ser praticada por pessoas de diferentes classes e nacionalidades, imigrantes, policiais, soldados e até mesmo estudiosos. No entanto, isso pouco fez para melhorar a opinião desfavorável do esporte aos olhos do público devido à sua associação duradoura e predominante com a escravidão. 

A persistente repressão estatal à capoeira começou no início do século 19, e só cresceria em intensidade com o passar das décadas. Embora a capoeira só se tornasse oficialmente ilegal no final do século, as autoridades não mediram esforços para sufocar o que consideravam uma ameaça à ordem pública. 

Em 1809, foi fundada a Guarda Real de Polícia e o diretor da guarda Major Miguel Nunes Vidigal (1745-1853) – ironicamente, um exímio capoeirista – tornou-se famoso na história brasileira por sua perseguição implacável aos colegas de profissão, permanecendo um formidável inimigo da capoeira de rua até sua morte. Com o Código Penal de 1830, os "atos de vadiagem" passaram a ser criminalizados e as autoridades estatais utilizaram-no para punir a prática da capoeira em liberdade.

Em 13 de maio de 1888, foi assinada a tão esperada Lei Áurea, abolindo a escravidão em todas as suas formas, e um ano depois, foi declarada a Primeira República Brasileira (1889 1930). Embora o início da Primeira República tenha sido muito promissor para a comunidade afro-brasileira, cuja liberdade das correntes foi finalmente garantida constitucionalmente, também marcou o início do período mais sombrio da história da capoeira. O Código Penal de 1890 elencava diretamente sua prática como crime com pena de prisão de 2 a 6 meses, agravando consideravelmente a perseguição aos capoeiristas. 

A polícia era conhecida por empregar tortura física e psicológica em capoeiristas presos para forçá-los a revelar a identidade de outros praticantes, e os suspeitos também eram comumente deportados para o arquipélago de Fernando de Noronha, onde tinham que fazer trabalhos forçados em condições precárias. Essas deportações foram especialmente forçadas pelo violento chefe de polícia João Batista de Sampaio Ferraz (1857-?), outro inimigo infame da prática. 

Somente no século 20, a reputação da capoeira começou a melhorar gradualmente. Essa mudança deveu-se, em grande parte, aos esforços do mestre de capoeira Bimba (1900-1974) na década de 1930, que promoveu a prática como um esporte formal. A academização da capoeira, juntamente com um crescente interesse nacional por práticas culturais de raízes africanas, acabou levando à sua aceitação. Em 1937, a capoeira foi retirada do Código Penal e, juntamente com o samba, foi abraçada como símbolo da cultura nacional. 

 Mestre Bimba.

 

As repercussões da institucionalização da capoeira levaram à divisão da prática em duas escolas principais: a Capoeira Regional do Mestre Bimba e a Capoeira Angola do Mestre Pastinha (1889-1981). 

A capoeira regional prioriza o aspecto técnico do estilo de luta e é praticada em ambientes mais controlados, como escolas e torneios, enquanto a capoeira angola permanece mais fiel à tradição, enfatizando elementos musicais, comunitários e espirituais. Ambos os ramos permanecem ativos até hoje, embora haja um nível de rivalidade entre eles, já que muitos praticantes de capoeira angolana criticam a capoeira regional por perder de vista o verdadeiro espírito da malícia para atender à classe média e permanecer a favor do Estado, especialmente durante a ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985. 

À medida que mais associações de capoeira foram fundadas no Brasil, o esporte ganhou popularidade mundial ao longo da década de 1970, e agora é mundialmente respeitado como uma formidável luta. Em 2008, a capoeira foi oficialmente registrada como patrimônio cultural imaterial do Brasil, uma prova de seu papel como parte importante da identidade cultural do país.

É surpreendente observar o contraste entre a imagem pública contemporânea celebrada da capoeira e sua longa e longa História árdua marcada pela repressão estatal e pela violência que persistiu mesmo após o fim da escravidão. Foi somente quando a capoeira cedeu sua prática nos campos abertos e nas ruas da cidade – ou seja, seu estado desamarrado e imprevisível – e concordou com seu confinamento dentro de academias, que as autoridades cederam em sua perseguição secular.

  Hoje, a Capoeira é para todos!

 

A preservação da herança negra através da Capoeira

A história do Brasil (e das Américas em geral) está inseparavelmente ligada à história do sofrimento dos povos africanos nas mãos dos colonizadores europeus. Em sua exploração da Metamorfose Negra de Sylvia Wynter, Katherine McKittrick destaca o impacto duradouro do trauma da escravidão transatlântica nas práticas culturais negras, e a multiplicidade de maneiras pelas quais a humanidade negra foi sistematicamente negada e negada pelos colonizadores europeus. 

Esse processo de desumanização começou muito antes de o indivíduo negro pisar pela primeira vez nas Américas: a partir do momento em que foi violentamente sequestrado em sua terra natal, vendido à escravidão e forçado a suportar as condições precárias da "Passagem do Meio" – a jornada horripilante pelo Atlântico abarrotada dentro de navios europeus –, os negros foram submetidos a atos de violência especificamente destinados a aliená-los de seus torturadores brancos, tanto física quanto psicologicamente. 

Os negros foram despojados e reduzidos à sua adequação como trabalhadores físicos nas plantações, convertendo-os em negros "não-pessoas" e "não-seres" que foram "plantados no Novo Mundo não para habitar a terra, mas para produzir mecanicamente monoculturas e alimentar os sistemas econômicos".

Ao relatar as origens históricas da capoeira, Nestor Capoeira descreve as experiências angustiantes de negros escravizados que foram brutalmente capturados e transportados pelos portugueses através do Atlântico. Nas terras completamente desconhecidas do Brasil, esses indivíduos foram agrupados à força com escravos de várias regiões do continente africano pelo colonizador, que desconsiderava inteiramente suas diferenças culturais. Esse processo de homogeneização visava apagar a herança africana, erradicando tanto a individualidade quanto a diversidade cultural negra. 

No entanto, uma consequência dessa estratégia de dominação foi a criação de novas práticas que mesclaram elementos de múltiplas culturas africanas e fortaleceram sentimentos de comunidade e solidariedade entre a população escravizada. 

A capoeira, como exemplo de uma inovação cultural negra que nasceu em solo brasileiro, "... fornecia aos africanos e seus descendentes um senso de identidade nacional distinto daquele dos senhores brancos", concedendo-lhes assim o sentimento de pertencimento que havia sido apreendido em sua chegada à colônia. Por persistirem em práticas contínuas enraizadas na herança africana, mesmo diante da repressão esmagadora dos senhores de engenho e do Estado, os indivíduos escravizados se rebelaram contra os esforços para desumanizá-los em benefício da exploração do colonizador branco. 

Como argumenta Wynter, o ato de criar novas práticas dentro da cultura negra ("o processo de recriar a negritude") contribui diretamente para a reinvenção e afirmação da humanidade negra historicamente tão impiedosamente negada. Nas palavras do autor de capoeira Cesar Barbieri

"Esses homens, que em nenhum momento se renderam aos brancos, deram origem à Capoeira: uma linguagem polissêmica que, como uma das contradições do processo de dominação, representou um elemento importante para a preservação da identidade sociocultural. Essa identidade, consolidada no cotidiano do negro africano, foi crucial na luta pela sobrevivência física, tendo o corpo vivido como repertório cultural e, ao mesmo tempo, uma das principais armas contra o opressor. Como síntese, foi um elemento-chave no processo de (re)criação cultural." 

O que torna a capoeira única entre outras práticas culturais de origem africana que surgiram no contexto colonial e ofereceram à comunidade negra um senso de identidade cultural, é sua eficácia como instrumento de autodefesa. Quer se manifestasse primeiro como uma dança ou um estilo de combate, a capoeira historicamente ajudava as pessoas escravizadas em suas tentativas de fuga das plantações e, mais tarde, servia como proteção para os marginalizados contra a violência policial e a perseguição racial. 

Portanto, a capoeira encarnava, em sentido muito literal, uma arma – ou, mais precisamente, um escudo – com o qual o indivíduo negro poderia combater as injustiças que ameaçavam sua existência cotidiana e resistir aos inúmeros sistemas que trabalhavam incansavelmente para miná-las. 

Hoje em dia, a capoeira é praticada de forma muito diferente do que durante a era colonial e imperial do país, pois agora é formalmente reconhecida como uma arte. No entanto, entre os mestres de capoeira tradicionais e seus alunos permanece uma profunda reverência não apenas por os movimentos isoladamente, mas para o contexto histórico em que esses movimentos foram originalmente empregados. Aqui reside a função indiscutivelmente mais importante da capoeira – seu papel como monumento e celebração da herança afro-brasileira.

 

A Música na Capoeira

A capoeira faz questão de preservar oralmente sua própria história – os nomes de todos os bravos lutadores negros cujas histórias teriam caído na obscuridade – e, ao fazê-lo, resiste à tentativa do colonizador de banir a expressão cultural negra da realidade. Tece magistralmente o reconhecimento vívido da dor negra com a valorização ativa das raízes negras, já que a cultura africana ocupa o centro do palco em todos os aspectos da performance. 

Isso é particularmente evidente na música, que é executada utilizando exclusivamente instrumentos de origem africana e canções que muitas vezes contém palavras e frases em línguas africanas.

Ao esboçar a continuidade do sentimento anticapitalista e a crítica à subordinação racial expressa em diferentes gêneros de práticas musicais negras, Paul Gilroy, no capítulo "Diáspora, Utopia e a Crítica do Capitalismo", de seu livro There Ain't No Black in the Union Jack, de 1987, destaca como a valorização da herança negra e a preservação da memória da escravidão são temas centrais na produção musical negra.

Gilroy explica que o resgate do conhecimento sofreu incansáveis tentativas de apagamento pela hegemonia branca, e é crucial que os negros se libertem do que ele descreve como "a escravidão mental que permaneceu intacta mesmo quando os laços físicos foram desatados". 

É imperativo que a comunidade negra resista à repressão da memória das atrocidades cometidas pelos colonizadores europeus, expressando abertamente como esse trauma geracional continua a se manifestar nas experiências cotidianas dos indivíduos negros. Mas é igualmente importante que os negros celebrem em sua produção artística os vários elementos estilísticos enraizados na tradição africana e honrem o legado que conseguiu sobreviver apesar das adversidades. 

Na capoeira, a memória da luta negra permeia todos os aspectos da prática – desde seus elementos físicos, nascidos da necessidade de proteger o corpo negro de danos, até sua filosofia baseada na malícia. Esse embasamento na história é mais transparente no canto que acompanha as mais tradicionais apresentações de capoeira. 

Letras das cantigas lúdicas e, principalmente, das ladainhas mais melódicas – solos tradicionais cantados para iniciar formalmente as apresentações –, frequentemente aludem às agruras, passadas e presentes, da existência preta e parda, ao mesmo tempo em que narram o legado da prática. 

Um exemplo é a canção Essa Noite Eu Tive Um Sonho, uma ladainha que faz referência a Besouro Mangangá (1895-1924), lendário mestre de capoeira e herói negro que, segundo o mito mais popular, foi esfaqueado pelas costas em uma emboscada: 

Esta noite eu tive um sonho, oh meu Deus, com Besouro Mangagá, ele me disse: "rapaz, você precisa se cuidar. Eles estão jogando feitiços em você, Tenha cuidado para não ser pego. Eu tinha um corpo fechado", Ele me disse assim, "contra faca, barra, facão, foice e espada pequena. Mas lá no Maracangalha, tudo chegou ao fim. Com uma faca de tucum, o feitiço falhou." Mataram o Besouro na Maracangalha, na Maracangalha...

Assim, a capoeira vai além de exigir o simples reconhecimento da presença negra na história. Expõe os espectadores à beleza socialmente subestimada e à singularidade das formas culturais negras, fomentando a apreciação genuína das tradições africanas não apenas entre os negros, mas entre todos os que são curiosos e escolhem participar da roda.

 

Conclusão

Como já afirmado no início deste artigo, a capoeira como prática não pode ser facilmente definida, nem a extensão de seu significado para a comunidade afro-brasileira pode ser veiculada no escopo de apenas algumas páginas. É uma amálgama incrivelmente complexa de combate, dança, música e filosofia que se rebela veementemente contra todas as formas de restrição – sejam físicas, espirituais ou sistêmicas. 

A sua história é marcada por profundas injustiças, mas também por perseverança; de pessoas escravizadas que foram forçadas a deixar seu local de nascimento e suportar níveis inimagináveis de desumanização. 

Uma vez acorrentados, os colonizadores brancos procuraram apagar suas origens, costumes, língua e fé, visando torná-los historicamente inexistentes. Apesar desses esforços, os indivíduos negros recusaram essa extinção social; reinventaram as práticas culturais africanas na colônia, reinventando-se e afirmando sua própria humanidade negra. 

A capoeira é um testemunho dessa luta contra a perseguição de todos os aspectos da vida negra que persistiu mesmo após o fim da escravidão. Os capoeiristas estão profundamente empenhados em preservar a história da incansável luta de sua comunidade pela liberdade, mantendo-os conscientes de que, se não tivessem assumido essa tarefa, talvez ninguém mais o teria. 

No entanto, a capoeira transcende a mera preservação histórica. Mais do que simplesmente manter viva a chama da história negra, a capoeira convida pessoas de todas as esferas da vida a se reunirem ao redor da roda – para desafiar e se mover, cantar e dançar, brincar e rir e, o mais importante de tudo, ser. Celebra o fogo ruidoso da tradição africana que passou de mestre a aluno através dos séculos e continua a arder como símbolo dourado da resiliência e do poder negro.

 

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Ana Cassiano

Morei na Alemanha por 8 anos. Já visitei vários países de continentes diferentes. Sou Guia de Turismo em São Paulo, Escritora de Viagens e Colaboradora de Sites de Turismo.

MMorei na Alemanha por 8 anos. Já visitei vários países de continentes diferentes. Sou Guia de Turismo em São Paulo, Escritora de Viagens e Colaboradora de Sites de Turismo.orei na Alemanha por 8 anos. Já visitei vários países de continentes diferentes. Sou Guia de Turismo em São Paulo, Escritora de Viagens e Colaboradora de Sites de Turismo.